Gravuras de Lucian Freud no MASP

 Freud fotografado por David Dawson.
 
São Paulo: Em cartaz no Museu de Arte de São Paulo até outubro (prorrogado até 02 de fevereiro de 2014), “Lucian Freud Corpos e Rostos” tem como foco principal as gravuras feitas em dois períodos importantes: no final dos anos 1940, e de 1980 em diante.
 
Além dos trabalhos em água-forte, estão expostas cinco telas de épocas distintas, que propõem um breve panorama dos estilos experimentados pelo artista. Há ainda uma série de vinte e oito fotografias feitas por David Dawson, assistente de Freud por mais de vinte anos, que clicou o artista em ação no seu ateliê.
 
Por ter vivido no Reino Unido e adquirido nacionalidade britânica, Freud é mundialmente reconhecido como um pintor britânico. Ainda assim, seu sobrenome entrega sua origem: judeu nascido na Alemanha em 1922, Lucian é, como se poderia presumir, neto de Sigmund Freud, pai da psicanálise.
 
Fugindo da perseguição nazista, a família mudou-se para o Reino Unido, e é lá que Lucian acabou por trilhar sua trajetória artística. Juntamente com artistas de porte como Francis Bacon e Leon Kossoff, formou a A Escola de Londres, um círculo de artistas que se conheciam e formavam um grupo de resistência frente à onda abstracionista que dominava o cenário artístico de então.
 
Essencialmente um artista figurativo, Freud lapidou-se ao longo dos anos, e na década de 1960 consegue firmar a técnica e o estilo que irá caracterizá-lo dali em diante, e colocá-lo por definitivo na História da Arte.
 
David Dawson.
 
Estava ansiosíssima para ver a exposição. Confesso que, quando fiquei sabendo da mostra, me empolguei a ponto de navegar um tempo pelo Google Imagens, pensando em quais dos famosos nus e retratos aportaria por aqui. Ao me deparar com a informação sobre as gravuras, fiquei um tanto desapontada. Mas esse desânimo durou pouco.
 
“Meu trabalho é autobiográfico. É como um diário.” Escrita em uma das paredes de entrada da mostra, a frase, de autoria do pintor, funciona ao mesmo tempo como um alerta e um convite. Entre rostos e corpos, me perdi no tempo. Em uma técnica dita pelo próprio artista como imprecisa, Freud consegue explorar-se ao máximo como desenhista, algo que nunca deixou de ser mesmo na pintura, já que sempre começava uma tela a partir de um desenho feito com carvão. Para minha surpresa, as águas-fortes são ainda tão potentes quanto os óleos, talvez pela ausência da cor e pela força do preto.
 
Muitas referências vieram à tona quando mergulhei nas gravuras. De imediato, lembrei dos desenhos feitos com carvão e pastel de Toulouse-Lautrec e Degas, ambos estudiosos da figura humana. Em seguida, pensei na linha tortuosa, porém firme, dos corpos de Egon Schiele. Mas a linha de Freud me pareceu ainda mais tensa e dramática: enquanto Toulouse e Degas eram desenhistas-voyeurs, e a Schiele interessava o erotismo do corpo a partir da crueza da linha, Freud olhava demoradamente para seus modelos, que parecem querer devolver o olhar que receberam do artista. E é nesse jogo entre o corpo do artista e o corpo do modelo que é possível perceber a potência dos nus e retratos expostos.
 

“Kai” (1992).
 
O artista passava longas horas com seus modelos, examinava-os de diferentes ângulos, absorvendo o que estava na superfície e além dela. Tinha um jeito especial, impactante e penetrante de olhar, diziam. Se aproximava, se afastava, e daí subia em sua cadeira.
 
Os retratos, às vezes feitos a altura do olho ou um pouco mais do alto, revelam o jogo de corpos e olhares, que às vezes parecem não querer se cruzar, como em Kai (1992 – acima).
 
Os nus, desenhados em um ângulo pouco convencional que se tornou marca do artista, aparecem quase sempre deitados em camas e sofás, confortáveis e desprendidos, porém pouco sensuais no que diz respeito à tradição da pintura do nu. Os olhares, muitas vezes vagos e perdidos no ar, não convidam o espectador a passear por aqueles corpos: quem chamam são as próprias curvas, a pele, e o tanto que estas preenchem o espaço do papel, protagonistas exclusivas aos olhos do artista.
 
Freud não se preocupa em ser delicado ou lisonjeiro com os modelos, afinal, esses corpos e rostos fazem parte de um mundo particular, ainda que o artista dê a eles títulos genéricos, formais. Aonde há uma ruga, uma dobra, uma curva, há um mar de linhas finas a criarem uma densa área escura que contrasta violentamente com o branco do papel (pra quê a sutileza dos meios-tons?), como se não fosse justo ao retratado e ao espectador que essas marcas fossem ocultas, daí tamanha evidência. São elas que diferenciam, caracterizam, individualizam.
 

 

 Mulher com tatuagem no braço (1996).

 
Essas massas escuras dão ao retratado o aspecto de ter sido modelado pelo artista, como uma grande peça de argila. Em Mulher com tatuagem no braço (1996), é possível vagar pelas dobras do rosto e da bochecha da mulher que dorme, imaginando que elas se mexem, perturbadas, a cada respiração.
 
Separadas das gravuras, as fotografias de David Dawson revelam um pouco da dinâmica entre o artista e seus retratados dentro do ateliê.
 
Um Freud já senhor, de costas um pouco curvadas, cabelos eriçados e olhos vivos e penetrantes, examina um modelo, encara a rainha da Inglaterra, pinta uma tela do alto de sua cadeira, passa espuma de barbear com um pincel enorme enquanto encara a lente do fotógrafo. Cenas do cotidiano de um artista que parece não se importar em mostrar seu modus operandis, uma vez que considera sua própria obra uma biografia.
 

“Lucian shaving” (2006).
 
Contudo, o peso do sobrenome ainda recai sob sua produção. Caminhando pela exposição, ouvi um grupo de amigos conversando a respeito de alguns nus onde um modelo aparece em um sofá ou divã, elemento que conectaria o Freud-pintor ao Freud-psicanalista.
 
De fato, pelas gravuras e fotografias, é possível pensar nas relações de intimidade e confiança estabelecidas entre artista e modelo como similares às dinâmicas entre analista e analisando. Ainda assim, creio que Lucian Freud possa ser interpretado exclusivamente pela potência plástica da sua obra, nas não tão famosas (mais ainda assim impactantes!) gravuras apresentadas na exposição.
 

 
fonte: falacultura.com/lucian-freud-masp
 
Matéria da TV Cultura sobre a mostra.
 

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